Ir para o conteúdo
Polícia

Facções criminosas expandem domínio na Amazônia e extorquem garimpeiros ilegais

Pesquisa revela crescimento de 32% na presença do crime organizado na região em apenas um ano, com 17 grupos atuando em 45% dos municípios da Amazônia Legal

Extorsão sistematizada no garimpo

Garimpeiros ilegais de Alta Floresta, no Mato Grosso, recebem “informativos” do Comando Vermelho (CV) via WhatsApp com uma mensagem clara: pagar ou enfrentar as consequências. Desde outubro deste ano, a facção tornou obrigatório o cadastro e pagamento de mensalidade para todos que operam balsas e escarientes(equipamento de extração mineral em larga escala) na extração mineral.

As mensagens obtidas pela Agência Brasil são explícitas. “Todos os trabalhos ilegais dentro do estado de Mato Grosso são prioridade e voltados à organização”, informa o texto enviado pelos criminosos. Os pagamentos devem ser efetuados entre os dias 1º e 8 de cada mês, com valores que variam conforme o tipo de equipamento utilizado.

As ameaças não deixam margem para negociação. “Aqueles que não estiverem fechando com nós será liberado o mesmo ser roubado e também ser brecado de trabalhar. Se por acaso insistir será queimado sua máquina e poderá perder até mesmo a própria vida por estar batendo de frente”, alerta a mensagem da facção.

Avanço alarmante do crime organizado

Um estudo divulgado nesta quarta-feira (19) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) confirma a escalada das facções criminosas na Amazônia Legal. Lançado durante a COP30 em Belém, no pavilhão da Fundação Ford, o relatório revela dados preocupantes sobre a militarização da região.

A 4ª edição do Cartografias da Violência na Amazônia mostra que o crime organizado está presente em 344 dos 772 municípios da Amazônia Legal – o equivalente a 45% das cidades. O número representa um salto de 32% em relação a 2024, quando as organizações criminosas atuavam em 260 municípios. A região abrange os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins.

“O estudo mostra que essas facções, majoritariamente ligadas ao narcotráfico, veem na Amazônia e nos crimes ambientais novas formas de ganhar dinheiro e lavar dinheiro”, explica Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Intersecção entre narcotráfico e crimes ambientais

Para Samira, o Estado brasileiro enfrenta um desafio inédito com a convergência entre crime organizado e destruição ambiental. “Se isso já era um problema apenas do crime ambiental, quando chega o narcotráfico, ganha outro contorno. Estamos em um espaço de justiça climática e transição energética, mas nenhuma dessas soluções pode ser bem pensada no Brasil sem cidadania e segurança nos territórios”, avalia.

A pesquisa identificou 17 facções criminosas ativas na Amazônia. Além do CV e do Primeiro Comando da Capital (PCC), atuam grupos regionais como Amigos do Estado (ADE), Bonde dos 40 (B40), Primeiro Comando do Maranhão (PCM), Família Terror do Amapá (FTA), União Criminosa do Amapá (UCA), Comando Classe A (CCA), Bonde dos 13 (B13), Bonde dos 777 (dissidência do CV), Tropa do Castelar, Piratas do Solimões, Bonde do Maluco (BDM) e Guardiões do Estado (GDE). Há também organizações estrangeiras, como a venezuelana Tren de Aragua e a colombiana Estado Maior Central (EMC).

Comando Vermelho e PCC disputam hegemonia

O CV e o PCC são os grupos mais poderosos na região. O Comando Vermelho está presente em 286 cidades, dominando 202 municípios e disputando 84. A facção controla as principais rotas fluviais, especialmente no eixo do rio Solimões, articulado com a produção peruana e cartéis colombianos.

O escoamento das drogas ocorre pelos portos de Manaus, Santarém, Barcarena, Belém e Macapá, utilizando embarcações regionais, lanchas rápidas, submersíveis e “mulas” humanas. Além do tráfico, a facção disputa territórios para o varejo de drogas e opera em garimpos ilegais.

O PCC possui influência direta em 90 cidades, atuando de forma hegemônica em 31 e disputando 59 municípios. A organização foca na internacionalização dos mercados, intensificando o uso de rotas aéreas clandestinas com pistas em garimpos ilegais e unidades de conservação, além da rota oceânica via Suriname, que conecta Amapá e Pará a mercados internacionais.

Violência atinge níveis críticos

Em 2024, foram registradas 8.047 mortes violentas intencionais nos municípios da Amazônia Legal. A taxa de 27,3 assassinatos por 100 mil habitantes supera em 31% a média nacional. O Amapá lidera como estado mais violento da região e do país, com taxa de 45,1 mortes por 100 mil habitantes.

O Maranhão foi o único estado que apresentou aumento nas taxas de homicídio entre 2023 e 2024 (11,5%), reflexo da disputa territorial pelo controle do tráfico entre o Bonde dos 40, o Comando Vermelho e o PCC.

Entre as cidades mais violentas com até 20 mil habitantes, Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso, registrou um salto de 12 assassinatos em 2022 para 42 em 2024, fenômeno relacionado ao avanço do CV. A localização estratégica próxima à Bolívia favorece o tráfico internacional de drogas. A cidade também abriga parte da Terra Indígena Sararé, que registrou crescimento exponencial do garimpo.

“A situação em Sararé é muito impressionante. O Comando Vermelho chegou e passou a controlar toda a cadeia da extração de minério, principal do ouro. Não é mais só o garimpeiro, que já era um problema. É o garimpeiro que paga taxa ao Comando Vermelho para explorar o território. A lógica de controle territorial armado que vemos no Rio de Janeiro vai acontecendo nos territórios amazônicos”, alerta Samira.

Mato Grosso: segurança em colapso

Entre as cidades mais violentas com mais de 100 mil habitantes está Sorriso, também no Mato Grosso, que registrou 72 homicídios violentos em 2024. Conhecida como a “capital nacional do agronegócio” por liderar a produção mundial de soja, a cidade esteve por dois anos consecutivos entre as que registraram maiores taxas de estupros de vulnerável no país.

Os dados evidenciam a intensificação dos problemas de segurança pública no Mato Grosso. O estado, com extensa faixa de fronteira com a Bolívia – uma das maiores produtoras mundiais de cocaína –, tornou-se estratégico para o narcotráfico. Desde 2023, há acirramento das disputas entre o Comando Vermelho e a Tropa do Castelar, dissidência do CV aliada ao PCC.

A Pan-Amazônia transformou-se em corredor prioritário para abastecimento de cocaína nos mercados da Europa, América do Norte, África e Oceania.

Mulheres na linha de fogo

O documento indica que 586 mulheres foram assassinadas na Amazônia Legal em 2024, uma taxa de 4,1 por 100 mil mulheres – 21,8% superior à média nacional. Mato Grosso é o estado mais letal para mulheres (5,3 por 100 mil), e o Maranhão foi o único a registrar aumento nos homicídios femininos (19,8%).

“Olhando para essa mulher na Amazônia, que vive em territórios mais afastados dos centros urbanos e fica mais vulnerável, a gente precisa ser capaz de oferecer políticas de acolhimento, de empoderamento econômico e de enfrentamento à violência que dialoguem com a realidade dela”, defende Samira Bueno.

A diretora-executiva do FBSP ressalta a necessidade de adaptar os modelos de enfrentamento à violência doméstica às realidades locais. “Como você lida com violência doméstica em uma aldeia indígena? Como lida com violência doméstica em um município de fronteira, em que você não tem nenhum equipamento estatal especializado? Temos esse desafio de olhar para as especificidades”, conclui.

Com reportagem da Agência Brasil

Receba mensagem no WhatsApp