IBGE aponta que o Amazonas tem 1,6 mil crianças vivendo como marido e mulher
Dado alarmante revela vulnerabilidade social e expõe meninas a ciclo de violência, abandono escolar e gravidez precoce

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou dados preocupantes sobre a situação de crianças e adolescentes no Amazonas: aproximadamente 1,6 mil menores de idade vivem em união conjugal no estado, conforme apontam os dados mais recentes do Censo Demográfico e das Estatísticas do Registro Civil. A maioria esmagadora dessas uniões envolve meninas, que representam cerca de 77% dos casos.
O número coloca o Amazonas entre os estados com menores percentuais de pessoas vivendo em união conjugal (48,1%), mas esconde uma realidade dramática quando se observa a faixa etária envolvida. Os dados revelam que o problema do casamento infantil permanece como uma chaga social na região Norte do país.
Crescimento alarmante nos últimos anos
Dados compilados por organizações da sociedade civil mostram que o casamento infantil no Amazonas teve crescimento de 24,2% em apenas três anos. Em 2020, foram registrados 165 matrimônios civis envolvendo menores de idade. Em 2023, esse número saltou para 205 casos registrados oficialmente em cartórios.
A capital Manaus lidera os registros, com 102 casamentos entre menores e maiores de idade e dois casamentos entre menores em 2023. Itacoatiara aparece em segundo lugar com 12 casos, seguida por Careiro (10), Manacapuru e Tefé, ambas com sete casamentos registrados.
Brasil em 4º lugar mundial
O Brasil ocupa a quarta posição mundial em números absolutos de casamentos infantis, ficando atrás apenas de Índia, Bangladesh e Nigéria, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). No contexto nacional, o Amazonas apresenta uma das situações mais preocupantes da região Norte.
Em 2022, foram contabilizados 15,8 mil casamentos infantis em todo o país. A média nacional é de 43 casamentos de menores de 18 anos por dia, sendo 40 envolvendo adolescentes do sexo feminino. A maioria das meninas (95,4%) se casa com parceiros maiores de 18 anos, com diferença média de idade de nove anos entre os cônjuges.
Vulnerabilidade social como fator determinante
A advogada Alessandrine Silva, integrante da União Brasileira de Mulheres (UBM), aponta que a vulnerabilidade social tem relação direta com esses números alarmantes. “Aqui no Amazonas é algo que consideram ‘comum’. Basta observar os dados de gravidez: crianças de 10 a 14 anos que acabam virando mães, são cerca de 500 por ano”, destaca.
Os principais fatores que levam ao casamento infantil no estado incluem:
Pobreza extrema e falta de perspectivas
Disfuncionalidade familiar
Ausência de políticas públicas efetivas
Normalização cultural da prática
Gravidez precoce
Falta de acesso à educação
Consequências devastadoras para as meninas
As consequências do casamento infantil são especialmente graves para as meninas. Entre os principais impactos identificados por especialistas estão:
Educação comprometida: O abandono escolar é uma das primeiras consequências, limitando drasticamente as oportunidades futuras dessas jovens.
Ciclo de violência: A diferença de idade e poder entre os cônjuges coloca essas meninas em situação de vulnerabilidade para violência doméstica, psicológica e sexual.
Saúde em risco: Gravidez precoce, com todos os riscos associados para a saúde maternal e infantil.
Isolamento social: Restrição da mobilidade e liberdade, com perda de vínculos sociais e familiares.
Dependência econômica: Sem educação e profissionalização, essas meninas ficam completamente dependentes de seus parceiros.
O que diz a legislação
A presidente da Comissão de Proteção à Criança e ao Adolescente da OAB-AM, Thandra Sena, explica que a legislação brasileira passou por mudanças importantes. Desde março de 2019, o Código Civil permite o casamento apenas a partir dos 16 anos e com autorização dos pais ou autoridade judicial. Abaixo dessa idade, a união é completamente proibida.
“A lei está mais rigorosa, pois não abre nenhuma exceção para menores de 16 anos. O estupro de vulnerável, quando ocorre ato libidinoso com menores de 14 anos, tem pena de 8 a 15 anos de reclusão”, esclarece Sena.
União consensual supera casamento formal
O Censo 2022 revelou outra face preocupante do problema: pela primeira vez na história, as uniões consensuais (38,9%) superaram os casamentos civis e religiosos (37,9%) no Brasil. Essas uniões informais, muitas vezes não registradas, tornam ainda mais difícil o mapeamento e combate ao casamento infantil.
No levantamento nacional, foram identificadas 34,2 mil crianças de 10 a 14 anos vivendo em união conjugal, sendo 77% do sexo feminino. Os pesquisadores do IBGE alertam que não é possível determinar apenas pelos dados se essas crianças estão em união com outras crianças ou com adultos, mas a concentração dos casos ocorre próximo aos 14 anos de idade.
Subnotificação preocupante
Os números oficiais representam apenas a ponta do iceberg. O Amazonas está entre os estados com maior índice de subregistro civil, chegando a 9% dos casos. Isso significa que muitas uniões envolvendo crianças sequer são captadas pelas estatísticas oficiais.
As relações extraoficiais, especialmente comuns em áreas rurais e comunidades ribeirinhas isoladas, não entram nos levantamentos do IBGE, que se baseia apenas em registros formais dos Cartórios de Registro Civil.
Urgência de políticas públicas
Especialistas apontam a necessidade urgente de políticas públicas específicas para combater o casamento infantil no Amazonas:
Fortalecimento da rede de proteção: Integração entre escolas, conselhos tutelares, assistência social e sistema de justiça.
Busca ativa escolar: Identificação e resgate de crianças e adolescentes fora da escola.
Educação sexual abrangente: Implementação de programas de educação sexual e reprodutiva nas escolas.
Campanhas de conscientização: Trabalho de sensibilização com famílias e comunidades sobre os riscos e ilegalidade do casamento infantil.
Apoio econômico: Programas de transferência de renda condicionados à permanência na escola.
Capacitação de profissionais: Treinamento de educadores, profissionais de saúde e assistentes sociais para identificação de casos.
Interior do estado em situação crítica
A situação é ainda mais grave no interior do Amazonas, onde o isolamento geográfico, a pobreza extrema e a ausência do Estado criam condições propícias para a perpetuação do casamento infantil. Em muitas comunidades ribeirinhas, a prática é naturalizada e vista como uma forma de “proteção” para as meninas ou solução para situações de pobreza extrema.
“É um dever dos pais guardar e educar a criança e o adolescente. Por mais que dentro do nosso estado se tentem justificar, não podemos permitir”, enfatiza a presidente da Comissão de Proteção à Criança e ao Adolescente da OAB-AM.
Pandemia agravou o cenário
A pandemia de COVID-19 intensificou o problema. O fechamento das escolas, a quebra de vínculos com serviços de proteção e o agravamento da situação econômica expuseram ainda mais meninas ao risco de casamento infantil. Muitas famílias, diante da crise econômica, viram no casamento de suas filhas uma forma de reduzir despesas ou garantir alguma segurança financeira.
Chamado à ação
Os dados do IBGE escancaram uma realidade que não pode mais ser ignorada. As 1,6 mil crianças vivendo em união conjugal no Amazonas representam vidas marcadas pela violação de direitos fundamentais. Cada número dessa estatística é uma infância roubada, um futuro comprometido, uma violência normalizada.
É fundamental que o poder público, em todas as suas esferas, assuma o compromisso de erradicar o casamento infantil no estado. A sociedade civil, as organizações de defesa dos direitos da criança e do adolescente e a população em geral precisam romper o silêncio e a naturalização dessa prática.
O Amazonas não pode continuar contribuindo para que o Brasil mantenha sua vergonhosa posição entre os países com maior número de casamentos infantis do mundo. É hora de proteger nossas crianças e garantir que tenham direito a uma infância plena e um futuro com dignidade e oportunidades.
Onde buscar ajuda:
Disque 100 – Disque Direitos Humanos
Conselho Tutelar de sua cidade
Ministério Público do Estado do Amazonas
Defensoria Pública do Estado
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS)
Esta matéria faz parte de uma série especial sobre violações dos direitos de crianças e adolescentes no Amazonas.
